quinta-feira, 9 de maio de 2013

António de Cértima


Texto assinado por António de Cértima, publicado no n.º 115 da revista ABC, de 28/09/1922 – Ilustração de Martins Barata

António de Cértima (Oiã 1894 – Tondela 1983), foi cônsul em Dakar e em Sevilha
Nome de baptismo, António Augusto Gomes Cruzeiro


Maria Dolorosa
(RETRATO DE MULHER EM SEDA CRUA)
                                                                                                    
Falar dela a esta hora fulva e sob este céu ardente, copiado das páginas reverberantes de «Il Fuoco», é mal pronunciar, simplesmente, o alfabeto das suas frivolidades: as suas vinte e cinco «Tailleurs» e os seus vinte e cinco anos representados em outros tantos «batons» e bistres – idioma de perfumes e elegâncias em que ela nacionaliza as suas atitudes. Por isso, a despeito dos magnetismos cerúleos com que a evoco…; a despeito da febre de meus nervos de Outono onde ela se atulipa com passos rítmicos de folha seca, eu apenas sei repetir, aqui, aquela fotografia contorsiante em que uma vez a revelei sobre a seda crespa de minha sensibilidade – uma seda crua, com relevos neuróticos, de onde a Duse cortou os seus vestidos…      
………….
         - La «Douleureuse»! A sua vida é um livro mas um livro raro, com páginas de Wilde e Soror Mariana, sem «vient de paraitre» nem editor: é um livro por editar. A capa deste livro, «brochée» por dentro a inéditos de Camilo e folhas aliciantes de begónia, é, à nipónica, de um tecido original, com ramagens berrantes de paixão… o tecido do seu corpo – tapeçaria plástica dos tecidos das anatomias requintadas de Paris. O seu corpo é, pois, uma capa rara com um desenho a sanguínea – a sua boca, tirada em papel «couché», o «couché» da sua beleza.
         António Soares deformou-a para a capa de uma edição plagiada com talento: a «Leviana» de António Ferro. Mas ainda assim a sua boca não se perdeu cm o roubo de tintas do pintor. Continua posta no seu corpo, sortílega, inatingível, suprema, como precioso ex-libris de fascinação a etiquetar toda a sua vida – esse livro cujas folhas intactas, por abrir, eu rasgo agora delicadamente com o corta-papel da minha amizade.
         Tenho aqui um maço de cartas-programa, formato teatral, bilhetes, pensamentos, retratos, e alguns dos seus artigos inéditos, destinados aos jornais onde colabora, - enfim, toda uma argamassa de jornalismo e arte em que ela se tem publicado para mim em folhetins, no folhetim branco do seu corpo! E agora, como em todos os intervalos da minha febre, como sempre, eu, encostado na «maple» doce da sua lembrança, leio-a toda nesta biblioteca com que tem guarnecido, com os seus nervos e com os seus dedos melodiosos, as estantes literárias de meu coração de moço. E nesta leitura vai uma tarefa emotiva e contumaz: ando a ver se a foco na objectiva da minha nevrose, a ver se a fixo como quero na minha estesia a fim de a resumir numa epígrafe vibrátil e única – essa epígrafe em que ela viaja pelo mundo, laconicamente, sinteticamente, sem comentários e sem programas, muito senhora de si e de suas tendências singulares, como uma grande página esguia, sem texto, que fosse submetida à censura de Deus.
         Maria Dolorosa, é assim a mulher «hors-programme». Poucos a compreendem visto que toda a gente vem para o tablado onde ela passa como um meteoro ardente, a faulhar de arte, a horas certas – as horas do censo comum – e ela, supremamente egoísta e aristocraticamente «aparte», vem sempre fora de horas.
         A vida é hoje um enxundioso monopólio de burgueses; os seus sentimentos, as suas paixões são outras tantas figuras que o preconceito – o grande novo-rico – mandou gravar num medalhão servil, em barro das Caldas – as caldas da moral! Ora, Maria Dolorosa, maquilhada de uma independência «raffinée» tem vindo pela vida fora lendo esse medalhão no anverso para fugir ao horror da vulgaridade, e de aqui os seus dois escandalosos processos, escandalosos para os seus leitores ignorantes: ela fez do Amor um meio e da Dor um fim! Amorosa e santa desta maneira, tem-se enchido de lágrimas com que escreve a negro o seu drama, esse intenso drama «só para raros» que o Hamlet da sua boca teima em fazer representar a sério mergulhando os floretes do seu «charme» no peito dos espectadores…
Maria Dolorosa é um livro raro, meus senhores – o meu melhor livro do século XX, aquele em que trabalha pacientemente com a laboriosa pertinácia de um construtor de séculos.
Ela ficará, portanto, sendo um século – o século do seu corpo e da sua boca imortal – fechado com requinte, e a fechos de prata, dentro de um livro – a sua vida- e que eu ainda não publiquei por não ter acertado com o título… o título do seu beijo!

                                                                  ANTÓNIO DE CÉRTIMA

P.S. – Chega-me a notícia de que Maria Dolorosa acaba de casar – isto é, encheu de gralhas o livro da sua vida. Ficará uma edição errada: tentando o público pela capa mas com as linhas do texto desconjuntadas pelo dedo ignominioso do marido…
                                                                                     A. de C.

O livro de que se fala no texto, com capa de António Soares

Sobre LEVIANA de António Ferro aqui
Sobre o Mestre António Soares, aqui

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