quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Ao Vivo

Amélia ao vivo, no Circus Plaza.

A promoção do evento começou como qualquer outra, nas colunas publicitárias dos suplementos culturais e nas revistas de moda e cultura. A primeira vez que vi o anúncio reparei no grande formato e na força do contraste das cores usadas; uma estreita coluna do lado direito de seis páginas impar consecutivas, de cima a baixo, rosa velho e vermelho sangue num fundo negro de azeviche. Lembro-me de ter gostado do efeito visual e que segui em frente, li toda a revista nessa tarde e deixei-a no cesto ao lado sofá. Dias depois, enquanto arrumava uns discos novos passei pelos de Amélia e tirei um dos mais recentes para levar para o carro. Ouvia mais agora os discos da diva, depois do trágico desastre aéreo que a tinha levado do nosso convívio.
Viver no campo tem as suas vantagens mas é muito limitador no que respeita a acesso a espectáculos e actividade cultural em geral, pelo que nunca fui grande frequentador de concertos musicais ou peças de teatro. Na verdade, até então, tirando o teatro que se faz aqui na Associação de Socorros Mútuos, só uma vez vi teatro profissional, duas óperas de Wagner, uma de Rossini e dois concertos pela Banda do Exército nas poucas vezes que visitei a Capital. Penso dever-se a esse meu provincianismo não ter reparado de imediato no insólito do anúncio. O meu habitual alheamento dos eventos da grande cidade não me deixou ver o que era realmente anunciado – Amélia, ao vivo no Circus Plaza.
Com o passar dos dias o assunto foi sendo comentado aqui e ali, primeiro de forma esparsa e á medida que a data se aproximava passou a estar presente em todos os meios de comunicação. O dispêndio inicial em publicidade foi claramente avultado e resultou no despertar do interesse generalizado. A várias semanas do evento já não havia bilhetes disponíveis; era sabido que os promotores tinham pedido licença ao governo civil para usar os terceiro e quarto balcões, geralmente só utilizados em espectáculos em que a plateia não é ocupada por público. Se tal pedido fosse deferido seria a primeira vez que a grande sala abrigava mais de dez mil almas sob a sua cúpula dourada.
É muito diversa a forma como as pessoas reagem ao que não entendem plenamente. Numa entrevista de rua que vi no canal público, era perguntado aos transeuntes da praça do município se iam ver o espectáculo e o que esperavam que fosse acontecer no palco. Uma mulher disse que jamais poderia perder Amélia ao vivo e afastou-se apressada, uma grande parte respondeu que não poderia ir ou que não tinha dinheiro para isso mas que não faltaria se pudesse. Um ardina aproximou-se muito do microfone e deixou um sonoro “Já morreu!”. Algumas pessoas, quase todas com aspecto de trabalhadores estrangeiros, mostraram não estar a par do que lhes era perguntado. Um homenzinho baixo e muito branco explicou que iam pôr uma actriz muito parecida em cima do palco a fazer que cantava e usariam luzes, fumos, nevoeiros e projecções para iludir as pessoas. Um jovem casal de namorados disse, ele, que já antes do despenhamento que nunca foi testemunhado e do qual não havia provas, tinha sido usada mais do que uma pessoa para representar Amélia, ao que ela somou que o importante era a qualidade da interpretação e a expectativa pelas canções inéditas.
Guardava o meu bilhete com todo o cuidado. Trazia-o sempre comigo na carteira, por trás do livro de cheques. Programei a viagem com tempo para que tudo corresse bem e eu pudesse aproveitar a estada na capital e desfrutar disso que me trazia tão empolgado, Amélia, ao vivo! Reservei hotel para três noites e comprei bilhetes de comboio de forma a chegar à cidade ao fim da manhã do dia do evento.
A viagem correu muito bem. Talvez por ser a primeira vez que rumava á capital por outro motivo que não o trabalho, desfrutei sem qualquer ansiedade nem sombra de aborrecimento as quatro horas de surdo matraquear da longa máquina nos carris. A carruagem nova com os madeiramentos impecáveis e o piso ricamente alcatifado, as poltronas de braços largos, as grandes janelas de vidros impecavelmente limpos proporcionavam um doce e acolhedor conforto. Poucos minutos depois da partida uma jovem hospedeira trajada com um saia-casaco verde inglês de corte impecável, ofereceu-me um jornal, explicou que me poderia trazer o telefone ao lugar e que estava disponível bastando premir o botão que me indicou. De início pousei o olhar na paisagem; não tardou era mar, e foi mar durante mais de uma hora, um tempo que fui imaginando eternizado numa infinita procura a que me não sentia alheio. Nesse langor, deixou de ser mar e apareceu uma fina neblina a encimar tudo o que o que se via. Mantive o jornal nas mãos sobre o colo e reclinado para a janela deixei correr a imensidão dos arrozais, o voo de patos em formação, até que uma encosta íngreme e muito próxima apagou a paisagem, retirou muita da luz que entrava pelas janelas e me fez voltar para o interior.
            Folheei o jornal sem preocupação de grandes leituras, li os títulos e vi as imagens, até que me deparei com o anúncio do evento do dia em página inteira, colorido, uma bela obra gráfica. Ao voltar a folha encontrei uma entrevista ao promotor do evento, um empresário do mundo do espectáculo bastante conhecido e com boa reputação na praça. O meu olhar foi ao encontro da resposta dada a uma das perguntas realçadas a negrito e que inquiria sobre o carácter de “força de expressão” quando se dizia “ao vivo”. A resposta era veemente, que não era de todo uma força de expressão, que era muito mais uma forma nova de abordar a existência e de redefinição do conceito de original e alargamento do âmbito de sujeito e propriedade intelectual etc. E terminava dizendo que o que tínhamos era um encontro marcado com Amélia, ao vivo!
            Na aproximação do destino, estação onde o comboio termina a viagem, a envolvente é de cintura industrial e zona portuária, muitos guindastes e uma profusão de ramais de via-férrea por todo o lado até que passado um longo túnel se avista o cais da estação e o seu burburinho natural. A viagem termina com um silvo, uma chiadeira fina de travões e uma pancada abafada. A capital tem quase sempre uma temperatura mais alta e uma luminosidade muito branca que pode incomodar quem não está habituado. A chegada de um comboio de longo curso, gera nas grandes estações um frenesim muito grande mas que se dispersa com a mesma rapidez com que aparece.
            Dirigi-me antes de mais ao hotel para deixar a mala e assim que abri aporta do quarto ouvi o telefone a tocar. Achei estranho mas levantei o auscultador.
            - Sim?
            - Sr. Engenheiro? Uma senhora que diz ser Alberta Fernandez pediu-me para ver se o Sr. estava no hotel e se poderia falar com o Sr. engenheiro. Eu só disse que ia ver.
            Tinha conhecido Alberta em África, era uma grata amizade que eu acarinhava muito. Senti um aperto no peito, já não a via há muitos anos e não sabia como tinha dado comigo ali, no hotel.
            - Faça a ligação por favor. ( ) Estou.
            - Márcio?
            - Alberta, és tu? Mas que surpresa, ainda nem acredito que estou a falar contigo! Acabei de chegar e…
            - Olá! Eu tive primeiro a surpresa; vinha eu no táxi do aeroporto e quem vejo ao passar pela estação de caminho-de-ferro, o meu querido Márcio. Venho por quinze dias, por quantos vamos ser os vizinhos mais felizes do mundo?
            - Bem… Eu vim por uns dias, pensava eu… Em que hotel estás? Jantas comigo?
            Jantamos juntos nessa noite e em todas as outras que se seguiram. Não sei com que intuito tinha Alberta ido à capital, mas em todos aqueles dias estivemos sempre juntos, aparentemente fomos para estar um com o outro, e estamos até hoje. Como o tempo passa!


JMP

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